A violência é um traço característico da sociedade contemporânea. Manifesta-se de diferentes formas em nosso cotidiano: na televisão, no cinema, nos videogames, nos diversos esportes, na política e nas várias esferas do comportamento humano. Em termos globais, o item que mais consome os orçamentos dos diversos países do mundo são os gastos com guerras. Este cenário se agrava ainda mais em países como o Brasil, marcado pelas desigualdades sociais, A violência, então, passa a fazer parte do nosso cotidiano e as pessoas são obrigadas a conviver com ela de diferentes formas.
A capoeira, sendo uma modalidade de luta, está particularmente sujeita a influenciar-se pelo ambiente de agressividade presente em nossa sociedade. Cabe, então, refletir sobre o problema e compreender de que maneira parte significativa dos praticantes da arte-luta brasileira pretende justificar atitudes que muitas vezes ainda que procurando apoiar-se nas tradições da capoeira ferem os mais elementares princípios éticos que devem nortear nossa vida social.
Sem dúvida, a superação do estado atual em que se encontra a capoeira passa pela análise dos argumentos mais utilizados por aqueles que imaginam ter o poder de decidir sobre os padrões sobre os quais a luta brasileira se apoia ou, segundo tais pessoas , deveria se apoiar.
Nestes breves comentários pretendemos destacar alguns pontos do discursos que, em nome das tradições da capoeira, termina por transformá-la numa prática violenta e anti-pedagógica.
Embora desconhecedores da história de conflitos e resistências da arte-luta brasileira, os arautos desta suposta tradição têm elaborado toda uma argumentação para justificar a introdução à exaustão, de técnicas alheias á capoeira e envolvê-la num espirito profundamente destrutivo. Acreditamos ser possível desvendar o caráter mistificador desta argumentação contribuindo assim, ainda que dentro do estrito limite daqueles capoeiristas abertos à reflexão sobre a prática que desenvolvem , para evitar que a capoeira continue nesta paradoxal trajetória de progredir tecnicamente e regredir eticamente. Afinal, enquanto a sociedade está na era do computador, muitos capoeiristas ainda se encontram na era da navalha.
Portanto, propomo-nos enumerar alguns sofismas que estão na base de certas concepções de capoeira veiculadas por diversos grupos de praticantes por todo o país. Sofismas são formas de raciocínio falsas com aparência de verdadeira, e é aí que reside sua capacidade de produzir conceitos falseados. Sabemos que uma meia-verdade mente mais do que uma mentira, justamente porque sua metade verdadeira lhe empresta uma aparência de justiça. Passemos, pois, ao que nos interessa mais diretamente.
PRIMEIRO SOFISMA
A capoeira foi criada pelos escravos na luta pela libertação, logo ela uma luta essencialmente violenta, uma vez que o escravo não podia medir esforços ara obter a liberdade. Portanto, a violência é um aspecto sem o qual a capoeira perde a sua identidade.
Este talvez seja o argumento mais citado por aqueles que pretendem fazer da capoeira uma espécie de "arte marcial completa", envolvendo desde os golpes traumáticos com pés e mãos, até projeções, torções e luta de chão, atingindo indistintamente todas as partes do corpo do adversário, sem qualquer tipo de proteção.
O primeiro sofisma é um bom exemplo de nossa explicação anterior: parte de um fato verdadeiro para uma conclusão falas. É verdade indiscutível o fato de que a luta pela liberdade impunha ao escravo uma extrema agressividade, na forma de resistência a um sistema opressor. Mesmo porque estava em jogo o maior bem de que dispõe o homem, sem o qual é mesmo de se questionar se a vida vale a pena, isto é, a liberdade. Porém, o equívoco parece estar em transportar o fato para os tempos presentes e imaginar que, em função desta realidade histórica, a capoeira jamais poderá ser praticada sobre outras bases, mais adequada aos nossos tempos, que exigem não mais a luta pela liberdade do corpo, mas uma intensa capacidade de reagir criticamente aos processos de massificação que cada vez mais uniformizam a sociedade enclausuram as consciências dos homens.
É claro que, sendo uma modalidade de luta, a capoeira deve trabalhar a agressividade de seus praticantes, visando atingir elevado nível de preparação física em seus golpes. No entanto , sendo também uma prática desportiva institucionalizada, é necessário que o principio do respeito à integridade física e moral de seus praticantes estejam acima de tudo. Para isso, é preciso, em alguns casos, estabelecer regras e limites, sem os quais a capoeira se confunde com o vale-tudo, que, como se sabe, é um tipo de competição, e não uma modalidade esportiva.
SEGUNDO SOFISMA
A capoeira até há muito pouco tempo, foi uma luta praticada exclusivamente por indivíduos das classes marginalizadas, que não dispunham de espaços apropriados para o desenvolvimento de suas manifestações culturais. Assim a capoeira nasceu se desenvolveu nas ruas. Portanto, a rua é um local que, segundo as tradições da capoeira, dever ser utilizado para a sua pratica nos tempos de hoje.Mais uma vez pode-se verificar o apelo às tradições para justificar toda sorte de atitudes e também, novamente, temos um raciocínio que não considera a mudança histórica na nossa sociedade e muito menos a transformação do papel da capoeira nesta mesma sociedade. É verdade que a capoeira [e fruto da resistência heróica das amadas sociais subalternas brasileiras, onde nasceu e se desenvolveu até a década de trinta deste século, quando Mestre Bimba procedeu à sua inserção junto às camadas sociais médias e superiores. Sem dúvida a rua foi continua sendo um verdadeiro "espaço cultural" para as classes oprimidas por um sistema social excludente. No entanto, é preciso perceber que as transformações sociais e aquelas ocorridas no âmbito da própria capoeira impõem uma reinterpretarção de sua prática nas ruas.
Inicialmente, convém observar que apenas em pouquíssimas situações a capoeira ainda é praticada nas ruas por falta dum espaço mais adequado. Além disso, uma vez que uma das principais bandeiras dos capoeiristas da atualidade consiste em retirar a capoeira de sua condição de marginalidade elevá-la ao plano de esporte e tradição cultural reconhecida respeitada, faz-se necessário lutar para que as instituições, cada vez mais ofereçam condições necessárias para que a luta brasileira conquiste espaços culturais mais dignos de sua história de resistência. Uma análise mais pormenorizada deste problema nos obrigaria também a detalhar o fato de que a sua, enquanto espaço de produção cultural, tem mudado significativamente seu papel na sociedade brasileira nas últimas décadas. Referimo-nos , principalmente, ao fenômeno da violência que, como sabemos, assume configurações completamente diferentes da malandragem de outrora.
TERCEIRO SOFISMA
Mais uma vez , temos uma afirmação que não considera a inserção atual da capoeira na sociedade brasileira. Afinal, a partir do momento em que os capoeiristas se propõem a conviver com instituições mais ou menos formalizadas na sociedade, isto é, ensinar e praticar a luta em clubes, escolas, universidades ou associações de qualquer tipo, faz-se necessário reconhecer como necessárias as regras de conduta e convívio social vigentes nestas instituições. Além disso, o recurso à alegação de que a cultura brasileira tem como característica o "jeitinho" e a "malandragem" é profundamente questionável, na medida em que a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática passa pela superação de certos traços supostamente identificadores da cultura nacional. Em outras palavras, quando afirmamos que no Brasil as coisas funcionam à base do improviso – reconhecendo como grande qualidade a nossa suposta capacidade de improvisar e burlar as regras – podemos estar defendendo certas atitudes que desrespeitem os direitos mais elementares das pessoas. No caso duma luta, r exemplo, a liberdade de burlar regras ou propor que não existam pode significar a colocação de vidas em risco.
QUARTO SOFISMA
O capoeirista, sendo um lutador, não deve, sob qualquer argumento, recusar-se a jogar com outro capoeirista quando estiver em uma roda ou outro evento, uma vez que assim agiria covardemente e feriria os princípios da própria capoeira, uma luta caracterizada pelo seu poder de combate.
Como nos outros sofismas, temos mais uma afirmação que não percebe as novas determinações a que está sujeita a capoeira. Não faz sentido exigirmos que o capoeirista hoje se procure se pautar por uma espécie de "ética do guerreiro", uma vez que, cada vez mais, a capoeira precisa conviver com um amplo universo de outras atividades presentes na vida do indivíduo. Ora, haveria algum sentido em se impor aos praticantes do caratê ou arte marcial uma conduta semelhante à dos antigos samurais do Oriente, sem adaptações ao mundo moderno? É claro que não, assim como o capoeirista de hoje não pode ser associado à figura do escravo que combatia pela sua liberdade. Desta maneira, faz-se necessário que o jogador de capoeira tenha o bom senso de exigir que seja respeitada a sua opção de praticá-la como uma luta que enriquece a sua vida, e não como um combate desesperado em que a coloca em perigo. Afinal a libertação maior que a capoeira pode nos permitir no mundo de hoje é livrar-nos das castrações que a sociedade no impõe cotidianamente. A alforria que os tempos atuais exigem deve romper com os grilhões que prendem não s nossas pernas ou braços, mas que impedem nossos pensamentos no rumo do desenvolvimento das capacidades criativas e da expressão de nossas verdadeiras identidades.
O escravo, quando fugia para aquilombar-se, ou mesmo chegava a matar para obter sua liberdade, agia movido pelos instintos de vida, de preservação de seu bem maior, a liberdade. Por maiores que fossem seus sofrimentos, esse negro era, como todos os homens que lutam pela liberdade, a corporificação da luta pela sobrevivência. Seus golpes eram pela igualdade em relação à liberdade que gozava o senhor.
Alguns capoeiristas de hoje, quando transcendem os princípios de nossa arte-luta e mesmo valores éticos básicos, estão movidos por que tipos de instintos? Que busca de liberdade há por trás de suas atitudes, muitas vezes violentas? Ao contrário da liberdade há uma tentativa de dominar o outro, de impedir-lhe a liberdade de movimentação, de ferir-lhe moral e fisicamente. Essa forma de se fazer a capoeira busca a destruição do outro e produz a autodestruição do indivíduo que a pratica. Essa capoeira, se vier a predominar sobre a outra, significará o fracasso de um projeto iniciado ainda na África, quando o negro era aprisionado e já começava a pensa em estratégias de libertação.
Luis Renato Vieira "Carioquinha" – Brasília/DF