Introdução
A temática envolvida na disciplina – Música e Instrumentação na Capoeira -, dentro de um tão restrito tempo em que foi abordada , a duração de uma semana apenas, naturalmente limita todos os desdobramentos que o tema permite e perpassa, ressalvando-se o seu pleno aproveitamento, dentro da melhor distribuição que a situação permitia, seja do ponto de vista do nível do conhecimento do tema pela turma – predominantemente leigos e neófitos dentro da problemática da capoeira como um todo e, mais ainda, no terreno bastante complexo e pouco explorado da sua música, seja também dentro de um tão restrito e já comentado tempo de duração da matéria.
Por isso, malgrado o próprio limite que as condições de uma matéria tão declaradamente destinada à uma abordagem introdutória pelo contexto em que se deu, me permito no presente oferecer algumas reflexões que oportunizem outras dimensões ao tema, sem pretender esgotá-lo (o que seria de todo infeliz tal pretensão por uma infinidade de motivos!), senão pelo menos elencar alguns elementos temáticos tendo a música da capoeira como foco de primeiro plano de debate e, em segundo plano, melhor dizendo, num contexto mais amplo, a relação da música com os estados de consciência, tentando trazer tal questão para o cerne do debate da capoeira enquanto investida de uma reciprocidade dialética com a música, ou, no mínimo com a musicalidade, do ponto de vista de seus fatores rituais e operativos maiores: a capoeira tem sua alma na música que a alimenta!
Além desse aspecto (estados de consciência), poderemos ainda, à guisa de uma outra faceta do tema música e sua relação com a capoeira – e vice-versa! -, trazer à baila um outro elemento teórico e, algumas vezes, retórico, dentro da problemática da História da Capoeira – os rituais originais aos quais se atribui a gênese da capoeira, e lançar algumas questões não necessariamente novas mas, talvez , apenas pontuais, relativamente a tais origens, particularmente a generalidade de certos conceitos e designações que se fizeram referência para a formulação de teses e avaliações históricas da capoeira, seja do ponto de vista da História, da Sociologia, da Antropologia e, no caso em foco, na Música, enquanto elemento modelador de acepções interpretativas da capoeira.
Da História e da Estória
Diante da fragilidade de uma bibliografia produzida diretamente dentro da própria capoeira, visando sistematizar e respaldar teses e teorias, bem como produzir estudos de caráter reconhecidamente científico, minha opção foi procurar na bibliografia produzida para a Área da Música, donde poderíamos inferir alguns insights aplicáveis às questões da capoeira.Porisso, a bibliografia inicialmente recolhida, após a constatação de que as obras internas à capoeira não avançaram muito no sentido dessa compreensão, foram as da música, estudos sobre as origens (Tinhorão, J.R., Os Sons dos Negros no Brasil), sobre a relação da música com os estados de consciência (Stewart, R.J., Música e Psique), além de uma incursão inicial no estudo da música enquanto fenômeno de extrapolação transcendental e revolucionário (Tame, D., O Poder Oculto da Música), obras essas que, num primeiro momento alimentaram e aguçaram a vontade de suscitar as facetas acima mencionadas do problema, transportando as questões da capoeira para uma incursão transdisciplinar, através de insumos no meu entender pertinentes, haja vista a própria limitação dos estudos específicos dentro da comunidade de estudiosos da capoeira e a indiscutível relação temática da musica em relação à capoeira e vice-versa. Cabe destacar, também, como parte dos estudos que utilizamos, texto relativo à fragilidade da produção teórica relativa à capoeira (Araújo, P.C., UNEB – Ba / F.C.D.E.F. – U.P.).
Justificativa/Contextualização
Dentro do debate atual da capoeira, seja na esfera das federações e da Confederação Brasileira de Capoeira – CBC, da Associação Brasileira de Professores de Capoeira – ABPC, bem como nas discussões que contam com figuras representativas da tradicional capoeira baiana – correntes ligadas a Capoeira Regional de Mestre Bimba e correntes ligadas à Capoeira Angola de Mestre Pastinha, enfim, no contexto da capoeira de raízes predominantemente baianas, encontramos calorosas discussões e críticas que são formuladas à aceleração dos ritmos musicais das rodas atuais – particularmente temos lido/visto serem publicados diversos artigos do Dr. Decanio (Angelo A. Decanio Filho), através dos quais esse conceituado estudioso – representante de um pensamento que abrange a lógica e os fundamentos da capoeira tanto do ponto de vista da Capoeira Regional quanto da Capoeira Angola – respectivamente segundo as correntes de Mestre Bimba e Mestre Pastinha, para não deixarmos essa contextualização em aberto, haja vista uma enorme gama de derivações e novas correntes que tem surgido, desconectadas e descomprometidas com essas vocações tradicionalistas e conservadora dos valores inerentes àquelas filosofias capoeirísticas, características desses dois grandes Mestres da Bahia e que não é minha intenção questionar ou analisar. O Dr. Decanio, como é mais conhecido aludido escritor, devido à sua condição de Médico Cirurgião, chega à atribuir o caráter predominantemente bélico existente nas rodas atuais à aceleração exagerada do ritmo, em particular do São Bento Grande de Angola, durante praticamente todo o curso de referidas rodas, onde constata que uma tal aceleração impõe os seguintes riscos aos praticantes:
- a obrigatoriedade do afastamento entre os jogadores – uma vez que o ritmo de jogo é praticamente impossível a dois;
- conseqüência do distanciamento, é uma atrofia nos reflexos de esquiva sincronizada com o movimento de ataque do parceiro, o que acaba criando situações inusitadas e colisões algumas vezes fatais, quando não deixam seqüelas seríssimas aos atletas;
- a movimentação solo que acaba acontecendo, cria o primado da performance acrobática individual e leva a cabo uma série de traumatismos, particularmente nas articulações – joelhos, colunas, calcanhares, etc…, provocando uma esteira de conseqüências nada agradáveis de afastamentos, alguns definitivos da prática da capoeira;
- a desvinculação entre a movimentação do corpo e o ritmo proposto pelos berimbaus, causando um prejuízo delicado na relação música X ritmo/jogo X corpo!
Nos transmite o Dr. Decanio, num outro trecho em que trata da temática da música na capoeira, os seguintes dizeres:
- Na capoeira, o ritmo ijexá, especialmente tocado pelo berimbau, conduz o ser humano a um nível vibratório, dos sistemas neuro-endócrino e motor, capaz de manifestar, de modo espontâneo e natural, padrões de comportamento representativos da personalidade de cada Ser em toda sua plenitude neuro-psico-cultural, integrando componentes genéticos, anatômicos, fisiológicos, culturais e experienciais vivenciadas anteriormente, quiçá inclusive no momento. (Decanio, p.51,1996).
Na CBC, a questão da música aparece como um problema instrumental e operacional mais específico, pois a realização de competições na capoeira parte da definição de estilos, ou, pelo menos, de ritmos, e a constatação a que infelizmente temos visto chegar é de que os capoeiristas competidores não tem mantido uma relação de concordância ou harmonia com os ritmos musicais ou com as temáticas propostas dos toques de berimbaus: o espírito predominante em ritmos de regional ou de angola tem sido o mesmo, e a falta de conhecimento dos fundamentos de cada ritmo está a cada dia mais patente nas competições que temos assistido, gerando uma massa de jogos indistintos, onde fica clara uma movimentação monolítica e despersonalizada, sem consistência alguma com a essência dos toques de berimbaus…
Mas, nossas justificativas não param aí. Do ponto de vista da literatura musical, vamos encontrar aspectos concernentes à questão da musica e suas conseqüências no estado de consciência dos ouvintes/envolvidos, que alimentam com diversos enfoques interessantes a nossa temática. Dentre essas, David Tame (op.cit) discute a transformação havida na musica, quando da chamada eclosão da nova música clássica, citando diversos compositores e o caráter pagão, agressivo e ferozmente ímpia (Tame,1984,pag.103), algo que imediatamente nos transporta para os símbolos que passaram a ser utilizados como marcas da modernidade (figuras alusivas à morte sendo naturalizada nos rituais de rock, nos estilos heavy metal, punks, funks entre outros), e isso nasceu dentro de um contexto de musicalidade extremamente sofisticada e complexa, como é o caso da obra de Igor Stravisnky, que permaneceu diversas décadas figurando entre os símbolos dessa nova era musical, impregnada de um tom cult desprovido de valores tradicionalmente associados à música – a transcendência da condição humana limitada, o transporte para esferas maiores da consciência e da elevação espiritual… Segundo esse autor, todo esse trajeto havido na música – a começar pela música clássica, se refletiu diretamente na qualidade de vida humana e nos valores que passaram a predominar na chamada era moderna, ao lado e talvez como consequência do pensamento materialista que passou a nortear todo o pensamento ocidental, o que acabou afetando não só o mundo capitalista (Europa e América) como também repercutiu negativamente na própria essência tradicionalmente mais espiritualizada da China e demais povos orientais. Vamos nos encontrar com esse tema dentro da capoeira, quando percebermos que os argumentos que sustentam a lógica (ou a retórica) criados pelos defensores do processo de modernização, sob a justificativa de que se trata da evolução e da modernidade, são comuns para a capoeira também! O caráter revolucionário da música como um todo é discutido por esse autor citado, que assevera o fato de, ao contrário do que possa parecer aos menos atentos, as revoluções a maioria das vezes, manifesta-se primeiro na música para depois manifestar-se na política, na cultura como um todo, ou nos costumes e, numa amostra da dita modernidade, sob a ótica vanguardista da música, vemos uma pérola dessa análise, vendo a clareza das transformações que se dão na esfera da racionalidade materialista dentro da esfera da música: (…) o expressionismo levou o zelo anti-romântico ao ponto de não reconhecer sentimentos, calcando sua nova doutrina estética no estágio mental da suspensão de sentimentos… (op.cit, p..96)
Ficam patentes numa tal tese, uma linha de pensamento que substitui o sentimento por uma atitude esteticamente justificada: o ritmo reproduz a pressa moderna que contribui dentro do processo de individualização urbana e segrega os indivíduos de suas reflexões comuns, é a competição manifestada nos processos aparentemente distantes: dentro da esfera da música! No caso das rodas de capoeira, essa realidade se manifesta no ar tenso dos presentes, a alta liberação da adrenalina e um desprezo confesso e deliberado a qualquer exigência melódica de compassos relaxados, que possam lembrar, mesmo que de longe, a batida melancólica da viola, no comentário do Mestre Pastinha: …"falando em capoeira, nunca mais vi jogar com viola, porquê? Há tocadores, mais perdeu o amor a este esporte, mudaram a idea, e eu não perco minhas ideas" e, comenta ainda o Mestre Decanio: "A presença da viola, é o traço de união com a chula portuguesa, pois corresponde ao violão nesta última, marcando o compasso do folguedo." (Decanio, 1996, pag.17). O tema, como foi previamente declarado, está sendo apenas introduzido, dado o caráter restrito da própria discussão dentro do contexto da disciplina ora enfocada, o que não pretende servir de escusa à sua pouca profundidade no presente artigo, mas, apenas, reconhecer que uma empresa desse porte irá requerer muito mais do que algumas horas de reflexão e do recolhimento de material bibliográfico de tão restrito alcance como o atualmente disponível ao meu alcance. No entanto, malgrados os aspectos limitantes aqui identificados, podemos perceber que existem aspectos e políticas do aprendizado da capoeira que vem sendo propalados e defendidos, algumas vezes sob uma roupagem e um discurso modernizante, que tem produzido verdadeiras aberrações em relação aos tradicionais traços de irmandade e de festa, característicos da capoeira, substituindo-se o caráter festivo pelo competitivo e agressivo, matando os elementos lúdicos da capoeira e substituindo-os por um ritual sem regras e sem cerimônia, onde a falta de respeito pela música começa e termina junto com a falta de respeito entre os próprios participantes, sob o manto sagrado da criatividade, onde carecem os conhecimentos sobre as raizes, tanto musicais quanto rituais da capoeira, enquanto manifestação forjada no direito à livre manifestação do espírito de folguedo e de festa que vieram dentro da consciência afro, tendo encontrado o seu eco perfeito nos nossos índios, depois caboclos, mulatos, urbanos, rurais, festivos sinais iniciais de brasilidade, ora corrompidos por valores narcísicos e alienados, inspirados no mercado do corpo e da força… A capoeira e sua música se perdem da sua vocação de transe espiritual e em seu lugar entra uma espécie de transe estético, atávico em sua justificativa de origem, primeva manifestação pré-histórica de barbarismo… Se parecer exagero, no primeiro momento, basta contabilizarmos as mortes e as lesões que vem se avolumando na História corrente dessas rodas… Seria isso tudo apenas algo moderno?
Pela reabertura da questão das origens
Outro tema que me propus no início do presente, foi revolver o contexto de alguns conceitos que vem se propalando no universo semântico e teórico da capoeira, no que tange às origens da mesma, genericamente atribuída ao batuque, ao candomblé, aos jogos e rituais das nações africanas: tais como a Cujuinha, a Dança da Zebra, e outros rituais e folguedos afro-brasileiros, registrados em diversas obras de cunho histórico do Brasil Colonial.
Numa busca ao sentido do conceito do batuque, por exemplo, encontramos uma série de referências a essa manifestação, nas quais podemos logo perceber tratar-se de uma definição do branco, portugueses ou outros estudiosos europeus! Ficam, à guisa da proposta inicial desse texto, abertas as seguintes questões, no que diz respeito ao fato Histórico do qual se possa inferir que a capoeira deva ter suas origens ligadas ao batuque:
- se o batuque era o que aparece em um sem-número de obras e estudos históricos cientificamente respaldados, como distinguir de qual a modalidade de batuque foi possível derivar-se a luta-guerreira da capoeira?
- E, se a resposta a essa pergunta for o batuque enquanto dança/folguedo do recôncavo baiano, do qual se sabe o próprio Mestre Bimba teve uma herança cultural direta através do seu próprio pai, ficaria ainda a dúvida sobre alguns outros tipos de dança/folguedo que também possuía toda uma lógica guerreira em seus rituais – como o jongo, no Rio de Janeiro, e outros pontos da própria Bahia, de onde teria derivado inúmeras formas de jogo de capoeira, genericamente denominada Angola, também associadas essas manifestações com o batuque?
- Se o batuque era um conceito português – ou branco, por assim dizer, quais os rituais afro-negros que se ocultavam sob o manto da generalidade com que os dominadores tratavam os folguedos e as danças denominadas batuque?
- Dentre os rituais denominados batuques, como se definiam os estilos de combate, se é fato que havia uma grande miscelânea de manifestações naquele contexto do batuque: ou seja, danças, cantos, folguedos e, ao que parece, inclusive luta!
- Como se organizavam essas manifestações? Seriam esses espaços do batuque um alquimia social em que se misturariam elementos religiosos – a umbanda, diversão e o aprendizado político da guerra/capoeira?
- Nesse caso, os denominados batuques seriam uma associação cultural do negro, patrocinada pelos senhores benevolentes dentre os quais alguns se tornaram participantes e, provavelmente, tenham apoiado o aprendizado
da própria capoeira?No contexto dessa questão, quis apenas abrir alguns temas que poderiam ser amplamente desenvolvidos para uma melhor visualização da Capoeira, dentro dos estudos de suas origens, seus elementos formadores e sua gênese enquanto manifestação complexa de uma dinâmica histórica, talvez até o momento pouco aprofundada, ou pelo menos ainda permite muitos estudos para o seu aprofundamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- TAME, David – O poder Oculto da Música, Editora Cultrix – 1984, S.Paulo-SP
- FILHO, A. A. Decanio. – Falando em Capoeira, Coleção São Salomão – S/Editora – Salvador – BA, 1996.
- STEWART, R. J. – Música e Psique – Ed. Cultrix – 1987 – São Paulo – SP
- TINHORÃO, J.R. – Os Sons dos Negros no Brasil – Ed. Art Editora – 1988 – S.Paulo-SP